Garota Atômica - EP05 - T01

em 31 de janeiro de 2020




Casa da Mary – Sábado – 9h45min.

Finalmente um dia que havia começado normalmente. Sem assaltos, sem acidentes nem vilões… Só eu, Mary e a TV. Ela havia me chamado para passar a noite anterior na asa dela, como nós fazíamos antes do… Bom… É. E é óbvio que eu aceitei!

Havíamos acabado de acordar e estávamos vendo TV enquanto a Sra. Kaplan preparava o café da manhã. Mary estava sentada no sofá ao meu lado. Eu ainda estava um pouco sonolenta então decidi deitar a cabeça sobre o colo dela.

—Tô te incomodando? — perguntei, a olhando de baixo pra cima.

—Não. — ela respondeu, dando um sorrisinho.

—Tem certeza? — insisti. — Não tá doendo ou pesando? — quando persegui o que disse fiquei extremamente sem graça, sentindo meu rosto esquentar. — Ah, droga! Desculpe, eu sempre faço esses comentários idiotas, esqueci que você não…

—Tudo bem! — Mary riu. — É bom aproveitar agora, porque logo logo eu vou voltar a andar e aí não vou deixar mais você deitar nas minhas pernas assim!

Nesse exato momento a Sra. Kaplan entrou na sala com um sorriso que se desfez assim que ouviu a última frase da filha. Se aproximando mais de nós, ela então disse um tanto séria:

—Meninas, eu já terminei de fazer o café… Belly, pode ir se servir primeiro, eu quero falar com a Mary a sós um instante…

—Tudo bem, Sra. Kaplan… — eu respondi, imediatamente me levantando e indo para a cozinha.

Mesmo estando um pouco longe da sala, eu conseguia ouvir exatamente o que diziam. Eu então me aproximei da porta, ficando encostada num dos cantos ao lado do armário principal para entender melhor do que se tratava.

—Escuta, filha… É… Sobre a sua fisioterapia… Não vai dar…

—Há algum problema? A data de início vai atrasar? Não tem problema, eu espero o tempo que for preciso!

—Não, não, você não entendeu… O tratamento que você precisa… Bom, ele… Ele é muito acima do que eu seu pai podemos pagar…

—C-como assim? Eu… Nunca mais vou andar de novo? Ao ouvir aquilo, senti um enorme aperto em meu coração e não consegui conter minhas lágrimas. Porém Mary, ela não chorou. Deve ter sido um choque tão enorme que ela mal pôde reagir.

—Por favor me perdoe…

—Não é culpa sua, mãe… — ela respondeu calmamente, sem nem mesmo tremular a voz. — Pode me ajudar a ir para a cadeira? Quero tomar café da manhã antes que a Belly acabe com tudo!

Mary Kaplan é a garota mais forte que eu conheço. Mesmo quando tudo de pior que pode acontecer acontece, ela não se abate. Não deixa os sentimentos ruins a invadirem. Eu queria ser como ela.

Assim que ouvi o som das rodas da cadeira se aproximando, corri para longe da porta e peguei uma xícara, levando-a a boca.

—Hm… Impressionante! — Mary disse, sorrindo. — Ainda tem comida na mesa!

—Eu resolvi te esperar dessa vez! — respondi, tentando disfarçar.

Nós já íamos começar a comer quando ouvimos o som da TV. Então Mary olhou pra mim e disse:

—Ah, a TV… Eu vou lá desligar… — e se virou, voltando pra sala. Poucos segundos depois ela me chamou. E claro, eu fui atrás dela. — Belly, você não vai acreditar nisso… — balbuciou, com os olhos vidrados na tela.

—Ei, você! — a imagem de Steve Simon apareceu na tela. — Você mesmo! Você que está usando seu celular ou vendo TV, na rua, em casa… Eu quero te mostrar uma coisa. — de repente, uma série de vídeos de todos os meus combates das últimas semanas começou a rodar. — Sim, é a nossa Garota Atômica! Mas você nota alguma coisa? — a voz de Steve narrava, logo após o vídeo ser pausado em uma imagem minha com um dos braços levantados, no mesmo dia em que eu deti o grupo de ladrões no galpão da Something S.A. Eu sequer sabia que aquilo havia sido registrado. — Olhe bem… — um círculo vermelho apareceu na região da minha axila. — É isso aí, aquilo no uniforme da super-heroína de Emerald City é suor! Mas não se preocupe em ter uma heroína malcheirosa, isso já é passado! Porque a garota cor-de-rosa conheceu o novo antitranspirante Bomba Atômica da Something S.A! Sua nova fórmula combate a transpiração e mau cheiro por muito mais tempo e com muito mais intensidade! Está com um super-suor? Compre o Bomba Atômica da Something S.A! O antitranspirante oficial da Garota Atômica!
O comercial terminou com a imagem da embalagem rosa e preta do desodorante sobreposta ao fundo escuro em degradê.

—Ah, eu sabia… — disse a Sra. Kaplan, que estava encostada na porta da cozinha, observando tudo.

— Até que demorou bastante pra Garota Atômica se unir aos grandes empresários!

—O que? — me virei para ela.

—Mãe, acho que não é bem assim… Deve haver algum engano…

—Engano é? Sei… Já já essa garota estará cheia de carros de luxo, banheiras chiques e rodeada de fotógrafos. E aí não vai mais ligar pra ninguém de Emerald City que tenha menos de um milhão no banco!

—Eu não acho que a Garota Atômica seja esse tipo de pessoa, Sra. Kaplan! — eu disse.

—O dinheiro corrompe a todos, Belly… Sem exceção… — ela concluiu, voltando para a cozinha.

—Belly, olha… — Mary tentava “consertar” — A minha mãe, ela…

—Tudo bem, Mary! Ela não sabe… — eu sorri de leve. — Agora… Quanto a esse comercial…

—O que pretende fazer?

—Acho que eu vou ter que ir pessoalmente falar com o Sr. Simon. — eu coloquei as duas mãos na cintura.

—Mas como? Ele é dono da maior empresa de tecnologia e publicidade de Emerald City! Caras assim são bem ocupados e extremamente difíceis de encontrar!

—Bom… Empresários sempre fazem algum tipo de festa ou reunião especial quando lançam um produto novo, não é? O Sr. Simon deve ter planejado uma dessas também…

—Tem razão… E sendo um evento da Something S. A. ele deve ter divulgado em todos lugares! — Mary tirou o celular do bolso e começou a pesquisar. — Ah, aqui! Mais fácil do que imaginei! Grande festa de lançamento do antitranspirante Bomba Atômica! E é hoje a noite!

—Hoje???

—Belly, espero que você esteja com seu uniforme inteiro… — ela sorriu olhando para mim. — A Garota Atômica tem uma festa pra ir!


***

Praça Principal de Emerald City – Sábado – 20h30min.

A noite estava estrelada e a praça bem cheia. A Something S. A. fechou o lugar apenas para o evento. Havia dois guarda-costas em cada entrada e seguranças espalhados pela área.

A maioria dos convidados estava aglomerada no centro da praça, onde um pequeno palco com um palanque foi montado. Perto dele, uma grande placa com a forma e a impressão da embalagem do novo produto da empresa estava fixada, promovendo ainda mais a marca.

As vozes se misturavam com a música ambiente baixa e calma enquanto os garçons serviam comes e bebes entre as conversas de homens e mulheres importantes e bem trajados.

O clima continuou dessa forma até que um senhor de casaca e gravata borboleta vermelha subiu ao palco, ficando em frente ao palanque e logo anunciando:

—Senhoras e senhores… O seu anfitrião: senhor Steve Simon! — ele estendeu sua mão esquerda para o outro lado do palco, por onde um jovem homem entrou, em meio aos aplausos de todos.

Com um enorme sorriso, o rapaz se caminhou até o palanque. Os aplausos foram parando aos poucos, conforme os convidados direcionavam sua atenção ao que ele diria.

***

—Mary, tá na escuta? — perguntei, enquanto voava para a praça.

—Bem aqui! — ela respondeu.

—Estou chegando na praça. Você sabe onde o Sr. Simon estará?

—Só um segundo, vou ler a programação do evento e verificar a infraestrutura montada. — ela ficou quieta por um instante. — Encontrei! No centro da praça foi montado um palco com um palanque. Segundo a lista de atividades, o Sr. Simon deve estar fazendo um discurso nesse exato momento.

—Certo! Estou quase sem bateria, Garota Atômica desligando! — disse, apoiando os dedos em meu fone bluetooth e pressionando o botão. — Sr. Simon, o senhor vai ter uma bela surpresa!

***

—E é por isso que o Bomba Atômica deve estar na casa de cada um dos cidadãos de Emerald City! — concluiu Steve Simon, em meio aos aplausos de todos os convidados e equipes de reportagem. — Alguma pergunta?

Todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, enquanto os flashes das câmeras relampejavam em direção ao rosto do rapaz. Então, do meio deles, uma jovem jornalista surgiu e, conseguindo sobrepor sua voz a de seus companheiros de profissão, perguntou:

—Como a Something S. A. conseguiu material com os combates da Garota Atômica para a montagem do comercial?

—Bom, infelizmente, eu não posso revelar a origem das imagens. Mas o que posso te dizer é que minha equipe fez um trabalho excelente conseguindo essas imagens. — ele sorriu orgulhosamente.

—A Garota Atômica sabe sobre essa propaganda? Ela concedeu permissão para utilizarem a imagem dela comercialmente? Qual a ligação dela com a Something S. A.?

***

Aquela pergunta foi a minha deixa. Voei bem rápido para baixo, pousando ao lado do palanque de Steve Simon e causando uma ventania um pouco forte.

—Essa eu mesma posso responder. — disse, séria, ouvindo toda a leve exaltação dos convidados e repórteres. — Eu não tenho nenhuma ligação com a Something S. A. — eu então me virei para o empresário. — Sr. Simon, eu gostaria de conversar com o senhor... Em particular.

—T-tudo… Tudo bem… — ele respondeu, parecendo um tanto surpreso e chocado.

—Com licença um minuto, pessoal… — eu anunciei aos convidados. — O Sr. Steve Simon tem um pequeno assunto pra resolver! Aproveitem a festa! — e, o agarrando pela gola, levantei voo bem rápido.


***

Prédio da Something S. A. – Sábado – 21h05min.


Eu pousei no terraço, soltando Steve Simon com um pouco de brutalidade. Não era minha intenção fazê-lo cair no chão daquele jeito, mas eu estava nervosa! E até que ele mereceu!

—Onde conseguiu aqueles vídeos? — perguntei, pairando à sua frente.

—Uau! — ele bufou, se levantando e ajeitando a gravata. — Então quer dizer que a Garota Atômica assistiu a um dos meus comerciais! — e soltou uma risadinha.

—Eu quero saber onde foi que conseguiu os vídeos! — repeti, em tom um pouco mais autoritário.

—Eu sou dono da Something S. A! Controlo os sistemas de distribuição de energia, serviços de transporte e principalmente… Câmeras de segurança! — ele sorriu de um jeito um tanto irônico, o que me deixou ainda mais furiosa.

—Eu nunca concordei com aquela porcaria de comercial! Eu nem sequer sabia dele! Você não tem o direito de usar minha imagem como bem entender. Quero que retire ele do ar imediatamente!

—Se eu não retirar o que você vai fazer? Me processar? Eu sou bilionário, posso pagar qualquer indenização!

—Acredite, um processo seria o menor dos seus problemas. — eu então pousei, me aproximando dele.

—Ah, por favor! Você é uma figura pública! Eu não preciso da sua permissão p… — ele tentou terminar, mas eu não deixei.

O agarrei pela gola mais uma vez e voei para cima em linha reta, ficando a mais de 400 metros de altitude. Assim que senti que estávamos alto o suficiente estiquei o braço que o segurava, ameaçando soltá-lo. Claro que eu jamais faria isso, eu só queria assustá-lo um pouco, como o Batman faria.

—Remova o comercial! — ordenei, com a voz baixa e calma.

—Eu não posso! P-por favor não me solte!

—O meu braço está cansando…

—Olha, e-eu… Nós… Nós podemos fazer um acordo!

—Eu não faço acordos com gente como você! E ajudo as pessoas porque elas precisam disso! Elas querem se sentir seguras, querem poder parar de sentir medo a cada vez que saem na rua! E é por isso que eu estou aqui! Eu cometi erros terríveis e pessoas se machucaram por minha causa! Não vou deixar isso acontecer de novo!

—E-eu… Eu entendo você! Eu também cometi erros! Também quero ajudar as pessoas!

—Ah quer? E como? Fazendo as pessoas pensarem que precisam de produtos fúteis só pra ganhar dinheiro? Ou então usando vídeos clandestinos das pessoas em suas propagandas sem que elas nem mesmas saibam da existência deles?

—N-não… E-eu… Você disse que cometeu erros, não foi? Nunca quis se redimir deles? Nunca quis o perdão de alguém que você ama?
Aquelas palavras bateram em meus ouvidos como duas marteladas e atingiram diretamente o meu coração. O perdão de alguém que eu amo… Mary…
Imediatamente desci com Steve de volta para o terraço e o coloquei no chão. Ele ainda estava ofegante e assustado.

—O que aconteceu com você? — perguntei, o observando.

—Já faz muito tempo… — ele começou, enquanto recuperava o fôlego. — Meu pai morreu… E foi tudo culpa minha…

—O que? Por que?

—Eu não gosto de falar sobre isso… — ele desviou o olhar.
O clima ficou pesado de repente. E um silêncio incômodo tomou conta do lugar até eu finalmente tomar coragem para perguntar:

—Que tipo de acordo você tem em mente? — pus as duas mãos na cintura, aguardando a resposta.
Steve Simon apenas sorriu levemente.


***

Casa da Mary – Sábado – 23h30min.

Eu fui até a janela do quarto de Mary e dei algumas batidinhas no vidro, como sempre fazia. Logo a vi, saindo da cama para a cadeira e depois vindo em minha direção para abrir a janela.

—E então, como foi? Falou com o Sr. Simon? — ela perguntou, enquanto eu entrava.

—F-falei! — respondi rápido, indo direto trocar de roupa.

—E então?

—Então o que?

—Como foi? Ele vai retirar o comercial?

—A-ah… Ele… É! Ele vai sim! E então… — eu saí do banheiro já de pijama. — Vamos dormir?

—Belly, tá tudo bem?

—Hã? Ah… Está! Claro que está! Por que não estaria?

—Não sei, você está diferente…

—Diferente? — fiz uma pausa tentando pensar em alguma desculpa. — Deve ser só cansaço, não se preocupe! Amanhã estarei novinha em folha!

—Hm… Ok! — Mary respondeu voltando para perto da cama e se transferindo da cadeira para ela.

— Boa noite, Belly…

—Boa noite…

Eu me deitei no colchonete ao lado da cama dela e me virei para o lado, na direção do guarda-roupas. Não preguei os olhos sequer por um segundo, apenas pensando no acordo que havia feito com Steve Simon. Foi por uma boa causa, mas… Eu não tinha certeza se era certo.

***

Prédio da Something S. A. – Segunda-feira – 14h30min.


Já fazia meia hora que eu estava sentada em uma poltrona na sala de espera da empresa. E sim, eu estava com meu uniforme de super-heroína, afinal, foi a Garota Atômica quem fez o acordo com Steve Simon, não a Belly.

Não demorou para o Sr. Simon entrar na sala, com seu sorriso orgulhoso de sempre. Ele usava um terno escuro listrado, com uma gravata vermelha.

—Garota Atômica! — disse ele, entusiasmado.

—Sr. Simon. — me levantei, o encarando.

—Fico feliz que tenha honrado nosso acordo e aparecido na hora certa. Vamos, siga-me, vou te mostrar seu novo local de trabalho.
Steve me levou até um pequeno estúdio no terceiro andar do prédio. O local era todo pintado de branco, com diversas câmeras e equipamentos de som. No fundo havia uma enorme mesa com um televisor e um painel de controle em cima.

—É aqui que você vai gravar todos os anúncios, chamadas, comerciais e esquetes educativas da Something S. A. — ele andou pela sala, e eu continuei o seguindo.

—Esquetes educativas?

—Claro! Você é uma figura que cativa muito as crianças… Você tem todos aqueles poderes que elas veem nos filmes e desenhos na vida real! Você é a representante perfeita para elas! Uma super-heroína forte e amiga! — ele então parou e me olhou de cima a baixo. Aquilo me deixou totalmente incomodada. — Agora… Quanto ao traje…

—O que tem meu traje?

—O que tem? Ah, pelo amor de Deus! Olha só pra ele! Todo sujo e maltrapilho! Você é o que? Uma adolescente indo pra uma festa à fantasia?

—Bom, na verdade…

—Ah, ah… — ele levantou o indicador, me interrompendo. — Você precisa de algo melhor… Venha comigo. — mais uma vez eu o segui, dessa vez para outro lugar do prédio

De volta ao elevador, notei que Steve pressionou o botão para o subsolo, o que me deixou ainda mais tensa. O que haveria lá? Não é muito normal um homem adulto levar uma garota pro andar de baixo de um prédio.
Assim que as portas se abriram, vi um corredor longo e bem largo, com paredes cobertas de metal e várias luzes, que iluminavam toda a sua extensão.
Steve saiu do elevador e começou a caminhar pelo corredor, mas eu não o segui. Fiquei exatamente onde estava, apenas olhando e analisando tudo com muita calma.

—Hey, não fique parada aí! — ele se virou para mim. — Vamos!
Ainda um pouco desconfiada, resolvi ir atrás dele. Nós continuamos pelo grande corredor até chegarmos a frente de uma enorme porta, com um pequeno painel de controle um pouco ao lado. Logo, Steve colocou sua mão sobre um leitor no painel e digitou um código no teclado. Quase que imediatamente, o sistema soltou alguns beeps e a grande porta destrancou, soltando uma pequena nuvem de vapor ao abrir.

Assim que entramos me deparei com uma enorme sala de computadores, com tamanho suficiente para comportar dez aviões comerciais e ainda sobrava! Ao fundo vi um computador enorme, com um painel gigantesco. E em seu imenso monitor, passavam, alternadamente com pequenas estáticas, as imagens das câmeras de segurança das ruas da cidade. Do outro lado estava um tatâmi de competição azul, onde um homem usando um tipo de armadura escura cheia de detalhes recebia golpes de outras pessoas e depois escrevia em uma prancheta. À direita desse “ringue” vi grandes cápsulas de vidro que comportavam o que pareciam ser várias versões da armadura usada pelo rapaz da prancheta. E na última e maior delas, estavam duas asas de metal, com propulsores nas pontas.

—Que lugar é esse? — perguntei, ainda um pouco chocada.

—Bem vinda ao meu “jardim” secreto! — exclamou Steve, ainda com seu sorriso orgulhoso que, agora, parecia um pouco mais amigável. — É aqui que eu venho quando quero ter novas ideias ou simplesmente relaxar um pouco! Ninguém da parte de cima do prédio sabe desse lugar.
Ele mais uma vez andou pela sala esperando que eu o seguisse. E assim o fiz. Nós continuamos percorrendo a sala até chegarmos a uma área separada, onde havia vários canhões de luz apontados para algo que não pude identificar prontamente, pois o objeto estava coberto com uma lona escura.

—Eu venho trabalhando em um projeto especial para as companhias de segurança. Pretendia lançá-lo no segundo semestre, mas agora que você está aqui, tenho a oportunidade perfeita. Garota Atômica, quero apresentar-lhe… Seu novo traje comercial.

Steve então puxou a lona que cobria o misterioso objeto, revelando mais uma cápsula de vidro com uma armadura dentro. Mas essa era diferente das outras… Se parecia muito com o meu traje! As cores, a estrutura, até mesmo havia uma capa! Mas este era mais bonito, e não era um colant como o que eu usava, estava mais para um tipo de armadura leve. Na parte de cima do traje, ao final do pescoço do manequim, estava uma pequena base de plástico ou acrílico, eu não sei ao certo, onde estava apoiada a minha nova máscara. Obviamente, ela era bem mais resistente e esteticamente melhor do que a que eu estava acostumada.

Notando minha surpresa e meu choque ao ver aquela vestimenta tão bem-feita e detalhada, Steve Simon não perdeu tempo e logo começou a falar sobre o que seria o meu novo uniforme:

—Esse é o Scoyco MA, o mais avançado traje em termos de proteção corporal e tecnologia. O modelo original é finalizado com a cor preta, mas eu quis manter a sua identidade visual neste, já que será a sua nova roupa. Toda a sua estrutura foi construída à base de grafeno e finalizado com uma camada de material impermeável. A parte lisa, por baixo do colete de proteção é feita de tecido impermeável anticorte autoajustável. Quanto a temperatura, você não precisa se preocupar. Tanto a parte rígida quanto o tecido da roupa e da capa são capazes de suportar 3000 graus Celsius ou mais! E sua principal funcionalidade mecânica é um extensor de força física de 500.000 newtons, o que significa que qualquer um que a use é capaz de levantar 5 toneladas a mais do que levanta com a sua força natural. Não que você precise disso, mas, como eu disse antes, o projeto inicial era focado na venda para companhias de segurança. A máscara tem um recurso especial, o meu preferido aliás: um comunicador remoto com conexão direta aos computadores dessa sala e memória para cadastro de mais 2000 números e códigos de área.

—É incrível… — respondi, ainda observando o traje.

—E a partir de hoje ele é seu! — ele disse, cruzando os braços. — Mas há uma condição. E acho que você já sabe qual é… Vai ter que aprender a escolher suas prioridades.
Eu apenas confirmei com a cabeça. Sabia exatamente de qual condição o Sr. Simon estava falando. Era parte do acordo que fizemos na noite anterior! Era muito simples: ele me daria todo o suporte do qual precisava e, em troca disso, eu usaria minha popularidade a favor da Something S. A. E além de armaduras e equipamentos, ele se comprometeu a enviar para os Kaplan o valor em dinheiro do tratamento fisioterápico de Mary, assim ela poderia voltar a andar. Eu finalmente conseguiria me redimir do erro que nem deveria ter cometido… Mas o preço disso era ficar presa ao patrocínio de um publicitário.

—Está pronta pra começar? — ele me olhou e, mais uma vez, deu seu sorriso orgulhoso.

Os dias que se seguiram foram todos a mesma coisa. Tinham exatamente a mesma rotina: pela manhã escola, a tarde gravar comerciais para o Sr. Simon e a noite, combater o crime! Fiz propagandas de carros, TV por assinatura, trajes para companhias de segurança, é claro, e até mesmo de cereal matinal infantil! Em poucos dias, a Garota Atômica estava em todos os lugares! Outdoors, telões, restaurantes, bares…

O novo traje era até bem confortável e suas funcionalidades me tiraram de diversas situações das quais eu não conseguiria sair apenas com o meu colant cor-de-rosa. O sistema de comunicação acoplado na máscara também era bastante eficiente e dez vezes melhor que o meu celular de tela rachada. Eu podia falar com Mary sem me preocupar com a bateria ou o sinal e ainda conseguia sintonizar com a frequência da polícia sem problemas! Mas eu não contei a ela sobre a roupa e nem sobre Steve Simon. Ela continuava acreditando que eu o havia convencido a remover todas as propagandas que obtivessem a minha imagem. E justamente por isso, eu comecei a evitá-la. Separadas outra vez… E novamente eu era a responsável.


***

Colégio Winston – Sexta-feira – 12h35min.


Eu estava saindo do colégio para ir a Something S. A. quando vi Mary vindo em minha direção. Ela girava as rodas da cadeira rápida e ferozmente e sua expressão não era das melhores.

—M-Mary? O que você está fazendo aqui?

—Você mentiu pra mim! — ela exclamou, assim que chegou perto.

—O que? E-eu não sei do que está falando… — tentei disfarçar, mas não adiantou.

—Ah não? — Mary ironizou. — Pode deixar, eu refresco sua memória! — ela então tirou o celular do bolso, e mexeu nele um pouco. Em seguida virou o aparelho para mim, me mostrando o vídeo do comercial do traje de segurança que eu havia feito. — E nem adianta tentar arranjar desculpas! Dessa vez eu sei que ninguém pegou sua imagem sem permissão. — eu apenas fiquei em silêncio. — Como pôde? Você está trabalhando pro Simon!

—Mary, não é o que você está pensando…

—Você se vendeu em troca dessa nova roupa! Eu sei! E agora nem sequer vem me visitar! Minha mãe tinha razão… O dinheiro corrompe a todos!

—Não foi por causa da roupa!

—Então foi pelo que? O que era tão valioso pra você que te fez vender sua imagem assim?

—Você! — eu quase gritei, causando um leve susto nela.

—Como assim? — ela baixou um pouco o tom de voz.

—Pedi que o Sr. Simon pagasse sua fisioterapia… E em troca eu gravaria quantos comerciais ele quisesse…

—O que??? Isabelly, você ficou louca???

—Eu… Ouvi a conversa que teve com a sua mãe… Não é justo que você passe o resto da vida nessa cadeira por minha causa! Eu só queria te ajudar…

—Me ajudar? Me ajudar??? Tem ideia do que isso pode causar??? As pessoas confiam em você! Todos confiam! E se você se tornar uma mísera marionete da mídia, vai perder essa confiança!

—Eu não vou deixar isso acontecer, Mary… Confie em mim…

—Desde que eu saí daquele hospital, você já me magoou tantas vezes que até perdi a conta…

—Como assim?

—Esquece… — ela desviou o olhar. — Vá ver o Sr. Simon… Nós… Nos falamos mais tarde… Eu preciso ir, tenho que passar no conservatório… Vou fazer o curso especial de readaptação! Fiquei muito tempo fora… Até… Breve, Belly… — ela virou a cadeira e começou a se afastar.


***

Prédio da Something S. A. – Sexta-feira – 14h30min.

Eu estava no estúdio branco de Steve Simon gravando mais um comercial. Era aquela mesma lenga-lenga de sempre, eu estava cansada daquilo. Tão cansada que errei o texto várias vezes… Eu sentia que algo ruim estava para acontecer…

—Tudo bem, vamos dar um tempo, pessoal… — disse o diretor, parecendo um pouco impaciente. Logo, toda a equipe se dispersou. Alguns saíram da sala, outros foram pegar alguns aperitivos na mesa de buffet.

Olhei para a porta do estúdio e lá estava o Sr. Simon, vindo em minha direção. Ele parecia um tanto preocupado e, assim que chegou perto o suficiente, me perguntou:

—Está tudo bem? Você parece um pouco… Abatida…

—Estou só um pouco… Preocupada…

—Quer conversar? — para um bilionário orgulhoso, ele estava sendo até bem atencioso. Mas poderia ser apenas uma estratégia. Patrões nunca querem ver seus funcionários mal porque eles podem produzir menos. De qualquer forma, eu apenas consenti com a cabeça.

—Mas… Pode ser em outro lugar? Tem… Muitas pessoas aqui.

—Claro, claro! Quer ir ao subsolo? — mais uma vez, confirmei com a cabeça.

***

Steve e eu descemos até a sala secreta dele. Eu não sei porque, mas gostava muito daquele lugar. Era confortável e eu sentia que lá podia ser eu mesma, embora estivesse usando o traje e a máscara. Eu ainda não havia revelado minha identidade ao Sr. Simon e, mesmo com sua aparente curiosidade, ele não ousou tentar descobri-la nem sequer uma vez. Isso era um ponto bem positivo. Talvez, com o tempo, até nós pudéssemos nos tornar bons amigos.

Assim como da última vez, ele colocou sua mão sobre o leitor de digitais e colocou a senha no painel. Logo as portas se abriram e nós entramos.

—O que está te incomodando, Garota Atômica? — ele perguntou calmamente.

—Eu não sei… — suspirei. — Tenho… Um mau pressentimento sobre alguma coisa… Eu tive uma pequena discussão hoje com a minha amiga… Aquela garota pra quem você se dispôs a pagar o tratamento. Ela me disse que a única coisa que eu tenho feito desde que nos reencontramos é magoá-la…

—Você contou a ela?

—Contei… E essa foi a resposta que ela deu… Disse que eu estava me deixando ser manipulada por você! Você não faria isso, faria?

—Mas é claro que não. — ele respondeu calmamente dando um leve sorriso. — Está livre para ir quando quiser…

—Mas se eu fizer isso, você para de pagar o tratamento da minha amiga… — eu suspirei. — Eu sabia…

—Não! Eu não vou parar!

—Não vai? Como assim?

—Atômica, olha… Eu admito que antes de te conhecer pessoalmente, eu achava que podia te usar e te manipular como bem entendesse! Mas durante essa semana em que eu estive te acompanhando e te filmando para os comerciais, eu acabei percebendo o quanto de compaixão você carrega… Você se importa com as pessoas até mais do que consigo mesma! Não faz boas ações em troca de fama e nem dinheiro… Você é totalmente honesta e não precisa provar nada pra ninguém! Eu… Eu queria ser assim…

—No dia em que nos conhecemos você disse que cometeu erros… Que pessoas se machucaram por sua culpa… Mas você não me contou o que realmente aconteceu… Steve, o que fez você se tornar tão superficial diante dos outros?

—Está certo… — ele suspirou, parecendo um pouco tenso. — Eu vou te contar tudo… Eu tinha só 17 anos quando aconteceu. Eu sou de uma família que já foi muito pobre… Minha mãe era empregada doméstica de uma senhora rica e meu pai era entregador. Eles sempre fizeram de tudo para que eu pudesse estudar e talvez, com sorte, mudar de vida… Mas eu era preguiçoso e teimoso! Preferia festas a salas de aula e bebida a livros. No dia do meu aniversário, eu peguei o carro dos meus pais escondido. Combinei de encontrar uns amigos meus para disputar um racha! Mas antes de ir, eu decidi que ia incrementar um pouco as coisas. Levei o carro até uma mecânica clandestina. O chefe me disse que quando o carro saísse de lá, pareceria até sem freios! Eu acabei vencendo a corrida por causa daquela modificação. Mas também foi ela que matou meu pai enquanto ele dirigia para o trabalho na manhã seguinte. Minha mãe ficou arrasada! E eu sabia que a culpa era minha! A partir daí decidi que realizaria os planos que minha família tinha para o meu futuro. Estudei o máximo que podia! Me formei em mecatrônica e robótica. Passei noites sem dormir! Sempre tentando estar um passo a frente, sempre tentando trazer coisas novas para todos! Sempre tentando me redimir por aquele dia… — eu não tinha certeza, mas podia jurar que vi algumas lágrimas pingarem no terno de Steve. — E agora estou aqui! Bilionário! Posso ter boas roupas, boa comida, bom transporte… Tudo o que eu quiser! E por causa disso os jornais e revistas dizem que eu sou o homem mais feliz da cidade! É uma pena que eles não consigam perceber que na verdade eu sou o mais triste. E tudo que eu mostro é uma máscara que criei para esconder o monstro que eu sou…

—Sr. Simon… — me aproximei um pouco dele. — As máscaras não escondem apenas monstros… Às vezes elas escondem heróis… — eu toquei a minha própria máscara, soltando um leve riso. E ele correspondeu.

—Obrigada, Atômica…

—Belly… — eu corrigi.

—O que?

—O meu nome! — eu ri mais uma vez. — Meu nome verdadeiro é Isabelly Carter!

—Oh… — ele ficou em silêncio por algum tempo, olhando para mim, mas logo depois sorriu suavemente.

— É um prazer conhecê-la, Isabelly…

Nesse momento, o comunicador em minha máscara captou uma das frequências do Departamento de Polícia. Era uma mensagem sobre um assalto a mão armada no Conservatório de Música de Emerald City. E com reféns. Droga! Era exatamente o lugar pra onde Mary havia ido.

—Bom… — disse Steve. — Vamos voltar ao estúdio?

—Eu não posso! — respondi, levemente agitada.

—O que? Como assim? E o comercial?

—Tem um assalto no Conservatório de Música… Eu tenho que ir! — respondi, dando passos firmes até a saída dos fundos da sala, que dava direto para a rua.

—Hey, Garota Atômica! Se lembra do que eu disse sobre prioridades?

—Sr. Simon… — eu me virei pra ele, um tanto frustrada. Não acreditei que ele se importava mais com o comercial depois de tudo que havia dito para mim.

—Você vai precisar de apoio visual… — ele correu para seu enorme computador e digitou um código, trocando as imagens para as transmissões de todas as câmeras de segurança instaladas na rua do Conservatório. Aquilo foi uma surpresa pra mim. Dei um sorriso o observando. — Vai, Belly! Emerald City precisa da sua heroína!

Eu confirmei com a cabeça sutilmente e logo em seguida corri para fora e, assim que cheguei na rua levantei voo para o local do crime.

A ação foi até que bem rápida. Com o auxílio de Steve Simon, consegui entrar facilmente no prédio sem ser percebida. Ele rastreou o celular de Mary através do comunicador em minha máscara e descobriu em qual sala estava ocorrendo o assalto. Mas em vez de entrar pela porta da frente, eu resolvi dar a volta e pegar os criminosos de surpresa. Funcionou perfeitamente. E em poucos minutos, os bandidos já estavam imobilizados e os reféns a salvo. Incluindo Mary que sorriu pra mim logo antes da minha saída.


***

Prédio da Something S. A. – Sábado – 16h15min.

Eu acompanhava Mary pelo prédio até o elevador. O Sr. Simon disse que queria conhecer a garota por trás da máscara e também aquela para quem ele estava pagando a fisioterapia. Ele queria falar com nós duas.
—Você salvou minha vida ontem, Belly… — ela disse. — Obrigada.

—Eu te salvaria mil vezes se fosse preciso! — respondi, dando um leve sorriso.

—Desculpe por ontem na sua escola… Sabe, eu me sinto sozinha quando você não está por perto.

—Tá tudo bem, Mary… Eu… Devia ter te contado…

—Você não tinha a obrigação de fazer isso… — ela suspirou. — Bom, agora você não precisa mais ficar substituindo o colant toda semana! — e soltou uma risadinha.

—Ha, ha. Engraçadinha…

Encontramos o Sr. Simon na porta do elevador. Ele cumprimentou Mary e pressionou o botão. Parecia bem diferente de quando o conheci há uma semana.

Assim que o elevador chegou, nós entramos e descemos para o subsolo. Foi engraçado ver a cara de tensão de Mary, exatamente como a minha da primeira vez que o Sr. Simon me levou até lá. O procedimento seguinte foi o mesmo: Steve destrancou as portas com o leitor de digitais e a senha e nós entramos. Então ele disse:

—Garotas, eu chamei vocês para virem aqui porque eu tenho algo importante pra dizer… É sobre esta sala.

—Aconteceu alguma coisa, Sr. Simon? — eu perguntei, preocupada.

—Bom, aconteceu. — ele respondeu sem mudar a expressão. — Depois da sua atuação no Conservatório de Música ontem, Isabelly, eu notei que esta sala tem muito mais potencial do que simplesmente me entreter em momentos de stress. Mary. — ele a olhou. — Belly me disse que você costuma ajudá-la nos serviços da Garota Atômica, é verdade?

—É sim, eu e Belly nos falamos por ligação no celular e eu uso meu computador pra pesquisar e rastrear. Ah e, eu também digo a Belly o que ela deve fazer quando ela fica confusa!

—Isso é ótimo! — ele sorriu e eu e Mary ficamos um pouco confusas. — Mas vocês duas não vão mais precisar disso…

—Como assim? — perguntamos exatamente ao mesmo tempo.

—Nós não estamos mais na minha sala anti-stress… Meninas, sejam bem-vindas ao novo centro de apoio da Garota Atômica!

Imediatamente, abrimos um sorriso enorme, totalmente surpresas. Um Centro de Apoio? Eu jamais sonharia com algo assim! Impulsivamente, eu corri até Steve e o abracei. Mas assim que percebi o contato físico que estava tendo com um “quase” estranho, me afastei. Ele apenas riu e foi conversar com Mary, empurrando sua cadeira até o grande painel de controla do computador principal para ensiná-la sobre suas funções. Ver aquilo me deixou emocionada e revigorada ao mesmo tempo. Agora eu tinha uma verdadeira equipe pra me ajudar! Aquele era apenas o início do nosso time atômico!





O título "Garota Atômica" e todos os seus personagens são de propriedade intelectual de Isabella Denelle. É proibida a venda ou distribuição desse texto, seja ela total ou parcial.
Factory Comics 2019.




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